Um artigo de Walmir Silva, autor de Além do Código.
No mundo frenético de hoje, uma realidade curiosa se destaca: o bizarro, o incomum e o extraordinário se tornam comuns em nossa vida com uma rapidez estonteante, enquanto as memórias das experiências mais belas e significativas parecem requerer um tempo muito maior para se cristalizar em nossa consciência. Este fenômeno, ao ser explorado sob a lente da literatura, da psicologia e da filosofia, oferece uma reflexão profunda sobre a natureza humana e a sociedade contemporânea.
Na literatura, o bizarro muitas vezes serve como um catalisador para o desenvolvimento da trama e o aprofundamento dos personagens. Autores como Franz Kafka, em obras como “A Metamorfose”, exploram o absurdo e o bizarro para refletir sobre a condição humana. Kafka ilustra como o bizarro pode rapidamente se infiltrar e dominar nossa realidade percebida.
Nosso cérebro está programado para notar e reagir rapidamente ao que é novo ou estranho ao ambiente, uma herança evolutiva que nos ajudava a sobreviver em um mundo cheio de perigos imprevisíveis. Assim, o bizarro, ao desafiar nossa noção de normalidade, se fixa rapidamente em nossa memória.
Em contraste, a formação de memórias belas e significativas é um processo mais lento. A beleza, muitas vezes encontrada na simplicidade e na rotina, requer um tipo diferente de atenção e apreciação. Escritores como Marcel Proust, em “Em Busca do Tempo Perdido”, mostram como os momentos belos e significativos da vida, embora menos impactantes inicialmente, têm o poder de se tornarem memórias duradouras e profundamente enraizadas.
Proust explora a ideia da “mémoire involontaire” (memória involuntária), onde as memórias mais preciosas muitas vezes emergem de experiências simples, mas profundas, que requerem um envolvimento prolongado e reflexivo para serem totalmente apreciadas e internalizadas.
Neste cenário, um exemplo contemporâneo notável é o avanço das Inteligências Artificiais (IAs) generativas, como os modelos de linguagem e as ferramentas de criação de arte digital. A princípio, para muitos, a capacidade dessas IAs de gerar conteúdo complexo e criativo pode parecer bizarra, até mesmo desconcertante. Elas desafiam nossa compreensão tradicional do que é exclusivamente “humano” — criatividade, expressão artística, e até mesmo a geração de narrativas coerentes.
O que é fascinante, e talvez um pouco alarmante, é a velocidade com que a sociedade está aceitando e integrando essas tecnologias em seu cotidiano. Empresas, artistas e consumidores comuns estão rapidamente adotando IAs generativas para uma variedade de usos, desde a criação de conteúdo de marketing até a arte digital e a escrita. Este fenômeno reflete a tendência humana de se fascinar rapidamente com o novo e o extraordinário, mesmo quando ele desafia nossas noções prévias de normalidade e possibilidade.
No entanto, é crucial refletir criticamente sobre as implicações dessa rápida adoção. Como Proust nos ensina sobre a importância do envolvimento reflexivo e prolongado com nossas experiências, devemos aplicar um olhar similar às IAs generativas. Questões importantes surgem: Estamos perdendo algo intrinsecamente humano ao delegar a criação artística e a escrita a máquinas? Como isso afeta nossa percepção de autenticidade e originalidade? E mais importante, estamos nos tornando insensíveis às implicações éticas e sociais mais profundas dessas tecnologias?
Um fenômeno recente e relevante neste contexto é o surgimento e a rápida popularização dos deepfakes. Deepfakes são vídeos ou áudios manipulados com o uso de inteligência artificial para criar a ilusão de que determinadas pessoas estão dizendo ou fazendo coisas que nunca realmente disseram ou fizeram. Inicialmente, essa tecnologia surgiu como uma novidade técnica impressionante, destacando o avanço das IAs na geração de conteúdo realista.
Assim como nos casos dos deepfakes, é essencial abordar as IAs generativas com uma mistura de admiração e cautela crítica, garantindo que seu uso e desenvolvimento sejam orientados por considerações éticas sólidas e responsabilidade social. Preocupante seria se as pessoas ampliassem a adoção dessas práticas, que poderíamos chamar de “selfFakes”, visando mascarar sua própria realidade e criar “pseudos eu’s” gerados a partir das IAs, o que poderia resultar na perda do verdadeiro eu.
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