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Um conto cyberpunk de Diego Cunha

De sua posição elevada, Kulik observava o apagão, os incêndios e as explosões. Todos resultados preliminares da força tarefa em andamento, o maior e mais arriscado projeto em que ele já havia se envolvido. A queda geral de energia e das comunicações em toda a região era um efeito colateral esperado e indicavam o progresso do grupo de assalto. Esse apagão significava que A.D.A.N. havia percebido o ataque e executado a melhor contramedida eletrônica possível: desativar todos os sistemas sob seu controle focalizando sua capacidade de processamento para localizar e destruir a ameaça ao servidor central.

Com a rede de dados desligada, as unidades de ataque ativaram os antigos dispositivos analógicos para se comunicar. Eram os equipamentos preparados pelos técnicos de Kulik, semelhantes àqueles usados há mais de dois séculos, dispositivos instáveis, de baixa fidelidade e ruidosos, mas eram a única opção segura nessa crise, uma vez que Sentinel não estaria ouvindo os sinais dessa tecnologia bastante obsoleta:

— VECTOR UM reportando: arrefecimento iniciado, contador em 300 — isso significava que as unidades de invasão ao servidor haviam ultrapassado as comportas de exaustão.

— Copiado, VECTOR. Contador em 300. VECTOR DOIS em posição. Boa sorte, rapazes!

Os times estavam dentro e de agora em diante acreditavam ter cinco minutos para destruir o núcleo da infraestrutura lógica que mantinha A.D.A.N. e o Protocolo Sentinel em funcionamento.

Kulik ouvia as curtas mensagens das suas equipes operacionais em seu receptor analógico, com muito chiado e distorção, a transmissão era muito ruim, mas seus ouvidos estavam bem treinados para isso. O dispositivo estava no bolso interno do seu blazer – abotoado até metade para evitar que o tecido se sacudisse sob o vento forte. Dezenas de andares abaixo os distritos da megalópole estavam escuros, e as exceções ao breu eram os aglomerados brilhantes formados pelos complexos prediais autossuficientes e pelos incontáveis focos de incêndio espalhados pela cidade. A visão lembrava as antigas fotografias do céu noturno, quando o firmamento ainda era visível, uma imensidão escura iluminada por pontos brilhantes dispersos.

— Eles entraram? — a voz era abafada e eletrônica, vinha lá detrás, de uma das garagens para levitadores do DAE-6 Night Club. Era SQUID falando de dentro do tanque de glicerina, em resposta ao relatório de VECTOR UM.

— Sim, entraram — replicou Kulik que agora segurava um charuto entre os dedos de sua prótese mecânica instalada no braço esquerdo. SQUID não podia ver, mas a expressão de Kulik era de desgosto e seu humor era fatalista.

— Entraram e estarão mortos em 5 minutos — completou Kulik.

— Eles irão desligar Sentinel. Será a melhor coisa que alguém já fez ou fará pelas pessoas dessa cidade nas últimas décadas. Um autossacrifício que…

Kulik interrompeu SQUID antes que ele pudesse evoluir em seu argumento — Não existe autossacrifício involuntário, aquelas mulheres e aqueles homens não sabem que vão morrer e nem concordaram com isso. É um abate sujo.

— Ainda assim eles salvarão milhões e serão os guias de libertação para as outras cidades-estados — SQUID tentava consolar Kulik, embora isso não fosse necessário ou possível.

— É o que todos os cretinos dizem quando chega esse momento – praguejou Kulik em um tom inaudível, enquanto mentalizava como as coisas chegaram a esse ponto sem retorno.

A causa raiz da operação que Kulik conduzia foi a implementação do Protocolo Sentinel. Por todo lugar e em todas as mídias chegavam mensagens inspiradoras sobre proteção, segurança e monitoramento aliadas à liberdade, qualidade de vida e bem-estar. Mas na prática o Protocolo Sentinel tratava-se de uma iniciativa de vigilância e repressão à violência na cidade-estado através do monitoramento dos sinais audiovisuais das pessoas conectadas, aquisição coerciva de dados dos sistemas operados na região e uma reestruturação da força policial visando representar fisicamente o Protocolo.

Nessa época, os bebês já saíam das maternidades corporativas identificados, vacinados e com os cyberwares de inclusão digital instalados em seu sistema nervoso. Daí em diante toda a comunicação e instrução, desde educação básica até propaganda corporativa, eram recebidas via rede sem fio diretamente no Neurolink do usuário e projetadas como realidade aumentada em seu campo de visão. As notificações sonoras ou vibracionais via estímulos nos ouvidos internos, as cores e os tons do Painel Ótico Pessoal eram ajustáveis. Tudo e todos estavam conectados ao sistema a qualquer momento e em qualquer lugar.

O núcleo do Protocolo Sentinel é o servidor onde todos os dados captados na megalópole são integrados, analisados e processados. Seu principal componente,  A.D.A.N. – Analysis and Decision Automated Network, é um sistema inteligente que computa as informações adquiridas em toda a região, julga as situações e decide quais operações de busca e apreensão devem ser realizadas. Sentinel atua não somente sobre crimes pregressos e ações ilegais em andamento, mas também sobre delitos em potencial através da análise preditiva do comportamento das pessoas monitoradas. Assim, vários indivíduos têm sido abordados e presos por algo que ainda não fizeram, mas que probabilisticamente estavam propensos a fazer.

A estrutura de operação de Sentinel ocorre através de uma polícia apoiada por autômatos de aspecto humanoide com chassi militar e em comunicação contínua com A.D.A.N., compondo o recém-inaugurado Departamento de Análise, Controle e Predição de Crimes. A publicidade dizia que os monitoramentos do Painel Ótico Pessoal e do Neurolink seriam obrigatórios para cidadãos apenados, procurados ou residentes em subsetores com índice de violência superior a 9.000 ocorrências-dia. Mas apesar da propaganda o Protocolo Sentinel iniciou suas atividades executando abordagens ultra agressivas e invasivas, fazendo uso indiscriminado dos dados nos POPs e links individuais de todas as pessoas conectadas na megalópole.

Sentinel tem sido cirúrgico e implacável na caçada aos criminosos, utilizando sua própria definição de crime e sua própria prioridade nas buscas e apreensões. Os subsetores onde residem as pessoas de menores rendas e piores condições de vida são duramente castigados com os efeitos colaterais das ações policiais corretivas e preditivas. Kulik não era um cientista desses que criam máquinas e inteligências artificiais, mas ele sabia qual era o resultado de projetos de contenção de pessoas e usurpação de direitos: anarquia e caos social, somados a uma espécie sangrenta e suja de desordem generalizada.

Kulik cresceu durante o devastador conflito nuclear que dizimou um terço da população mundial e que obscureceu os céus com uma camada de cinzas radioativas. Nos campos de batalha, ele se transformou, passando de soldado a comandante, liderando homens e máquinas, lutando por governos e empresas. Ao longo dos anos tornou-se pragmático e depois das próteses e de um pulmão artificial, ele mudou de ramo, agora operando a partir do DAE-6 Night Club, um refúgio para negócios irregulares e lembrança constante de sua vida na 6ª Divisão de Atividades Especiais.

Com a chegada do Protocolo Sentinel foi necessário reorganizar os negócios e procurar meios para os créditos continuarem fluindo. O DAE-6 iria fechar em algum momento e seria estourado pelas máquinas de A.D.A.N. se o sistema enxergasse o que era feito ali através dos olhos dos seus clientes e fornecedores. Novamente Kulik se adaptou e deu um jeito: eletrônica analógica, embaralhamento de sinais e alguns dispositivos que enganavam e se mantinham fora dos radares de Sentinel foram desenvolvidos pelos operativos de Kulik. Assim, apesar da crise social, ele estava novamente lucrando com a situação, até que tudo mudou com a chegada de um estrangeiro em busca de asilo.

O forasteiro que pedia asilo no DAE-6 era um desses g-humanos e não era possível ocultar isso de ninguém. Ele era altíssimo e muito magro, a pessoa de maior estatura que Kulik já havia visto. Planeta afora havia um amplo espectro de g-humanos, mas todos sempre esguios, e isso ocorria devido a variedade de condições gravitacionais dos ambientes em que tais pessoas e sua genealogia foram submetidos desde que a colonização de outros mundos havia começado. Já se falava em uma nova espécie de seres humanos após quase dois séculos de pessoas nascidas além do sistema solar; Quando em gravidades semelhantes à da Terra, esses g-humanos precisavam ficar imersos e entubados em um líquido de alta densidade, pois do contrário sua frágil estrutura seria esmagada pelo seu próprio peso.

Esse estranho havia chegado à Terra, desembarcado em seu tanque flutuante de glicerina em uma das garagens do DAE-6. Ele se dizia um fugitivo, o tipo de sujeito que Kulik abrigava por meses a fio, provendo uma identidade e antecedentes forjados, efetivamente criando uma nova persona do nada. Durante a formatação de identidade o estrangeiro recebeu o codinome SQUID. Após várias interações durante o processo de confecção da nova identidade, Kulik descobriu a motivação da fuga do g-humano: SQUID portava informações sobre a política nas colônias e dizia que o Protocolo Sentinel era apenas parte de uma iniciativa maior, um projeto de controle total da espécie humana.

Além do sistema solar, nas colônias mais proeminentes onde as super corporações estavam agora sediadas, a espécie humana modificou-se, adaptou-se, evoluiu e transcendeu nesses novos mundos. Um ecossistema de cooperação e entendimento se estabeleceu entre os novos humanos líderes da exploração espacial. O equilíbrio desejado na Terra, um lugar originalmente acolhedor e abundante, foi alcançado apenas no Espaço – no ambiente mais hostil aos seres vivos. Sob intensa necessidade de sobrevivência, a vida encontrou um caminho de conciliar seus agentes competitivos.

Esse novo povo entendeu que a única ameaça ao bem-estar alcançado nas estrelas era representada pelos humanos originais ainda aprisionados no caldeirão de caos que a Terra se tornou no século XXIII. Irremediavelmente o desejo, a dor e a ambição dos humanos repetirá ciclos históricos e logo eles buscarão o que desejam destruindo a forma mais perfeita de equilíbrio obtida até hoje. O Conclave, uma cúpula de cientistas-filósofos entre esses g-humanos, optou pelo Projeto Firmamento Exterior, mas tal grupo não era unânime, havia discordância e existiam desertores, e dentre esses se esgueirou SQUID.

Sentinel era agora uma ameaça existencial, tal qual a guerra nuclear do início do século. Motivado pelo g-humano traidor de seu povo, em Kulik floresceu o ideal de demonstrar às pessoas na Terra uma forma de lutar contra esse sistema. Essa tarefa seria algo que ele nunca havia feito – seria a chance de tornar-se outra pessoa. O Protocolo Sentinel estava sendo instalado pelas corporações nas demais cidades-estados sobreviventes da hecatombe nuclear, mas com as informações de SQUID seria possível elaborar uma contramedida, um ataque pontual e fulminante ao sistema. O próximo passo seria espalhar a boa notícia e liderar outras células revolucionárias.

A oportunidade residia em explorar o modelo de programação de A.D.A.N. empurrando o sistema em uma condição de super fluxo computacional, superando o limite físico de resfriamento e causando o expurgo do fluido de arrefecimento por comportas específicas cujas posições SQUID conhecia. Para levar o núcleo de processamento de Sentinel à esta condição seria preciso causar demanda por monitoramento e operações policiais em uma escala regional, implementando centenas de crises e problemas nas ruas da megalópole. Com o sistema ocupado pelo caos e com seu sistema de ventilação vulnerável, seria então possível a penetração de uma equipe pequena e fatal nos servidores computacionais de Sentinel.

Havia apenas um problema. SQUID advertiu que a janela de oportunidade no exaustor era bem curta, menos de três minutos entre a abertura e o fechamento, dadas as dimensões do complexo A.D.A.N. Isso seria tempo suficiente apenas para o ingresso na fortaleza eletrônica. Após tal intervalo as comportas seriam seladas novamente e a temperatura subiria mais uma vez. Kulik completara o plano e as instruções suprimindo essa informação das equipes, prometendo aos dois esquadrões de assalto quase o dobro do tempo. Os mercenários entrariam para encontrar e destruir A.D.A.N. e morreriam no processo.

De volta à sacada, o devaneio de Kulik é interrompido por uma nova rajada de comunicações eletrônicas ruidosas. Eram os momentos finais do procedimento:

— VECTOR DOIS, garanta a saída, Núcleo localizado! Contador em 181.

— Copiado! Prossiga, perímetro seguro. Temos vocês na linha de visão.

— Contato! A.D.A.N. dentro do alcance… MERDA! Essa coisa é imensa!

Uma quantidade enorme de ruído invade o canal e torna toda a comunicação ininteligível. Nada mais pode ser ouvido. Uma carga final de adrenalina é disparada no cérebro de Kulik, suas pupilas se dilatam e seus músculos se contraem. Com o coração a mil ele percebe a cidade retomando o seu brilho regular. O sinal de rede aparece novamente em seu Painel Ótico, ele não consegue engolir a saliva grossa formada pela tensão final desse momento.

— Sentinel está online novamente. A.D.A.N. retomou o controle da cidade — disse SQUID sem emoções.

— Perdemos, acabou — completou Kulik, com uma frieza profunda.

Kulik sabia que o retorno de Sentinel significa que suas unidades haviam sido sobrepujadas e que uma caçada humana inescapável seria empreendida para localizá-lo. As baixas dos operativos eram um dano colateral, mas eles estavam dentro, no núcleo do servidor, as plantas indicavam a ausência de sistemas de segurança após as comportas. Todas as informações que SQUID provera estavam corretas até ali, mas logo depois desse limiar tudo virou pó: seus planos, seus mercenários e as chances de libertar a cidade dos olhos e garras de A.D.A.N. A última batalha do velho mercenário havia se encerrado.

O Projeto do Conclave era perfeito, nem com informação privilegiada seria possível sabotar o Firmamento Exterior. A humanidade estava contida e dominada para sempre. Kulik tinha a expressão de alguém que sabe que vai morrer, enquanto seu mentor jazia no tanque aliviado como alguém que terminou uma grande tarefa e que agora pode repousar.

— Entendo a sua frustração, Kulik, tudo foi colocado em jogo. Contudo, você deve encontrar algum consolo em entender sua função no projeto: agente e instrumento do teste final de segurança para a evolução de sua espécie. Com a sua tentativa se esvai também toda a esperança. Eu ainda posso intermediar sua rendição, é hora de descansar.

Kulik desabotoou o coldre sob o blazer, ele o faz serenamente e com a memória muscular de um movimento realizado muitas vezes. Girou o corpo lentamente, sacou e destravou sua arma enquanto apontou a massa de mira para o tanque flutuante de glicerina.

— Esta cópia é um espécime funcional e que já cumpriu sua tarefa, assim fique à vontade caso isso venha a lhe causar algum — SQUID falava isso imerso no tanque observando as palmas das mãos quando um estrondo ecoou no ambiente seguido pelo som da ruptura da redoma de vidro e do barulho molhado de um rápido escoamento.

O corpo de SQUID, despreparado para a gravidade terrestre, tombou encharcado em espasmos, enquanto a borda da poça espessa, transparente e rajada de sangue alcança a bota direita de Kulik refletindo difusamente as luzes das sirenes que se aproximam.


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